Naturalistas e as plantas úteis nativas do sul de Minas Gerais
Maria das Graças Lins Brandão
DATAPLAMT – Museu de História Natural e
Jardim Botânico & Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Minas
Gerais
A flora brasileira representa uma das mais importantes fontes
de novos produtos farmacêuticos, cosméticos e nutracêuticos, devido a sua
biodiversidade e o uso tradicional associado. Na década de 70, a Organização Mundial da
Saúde (OMS) passou a reconhecer as plantas medicinais como importante fonte de
medicamentos e em 2002, ela instituiu um programa para estimular as pesquisas
de validação das espécies que contam com histórico de uso há séculos. Validar uma planta significa avaliar seu potencial
farmacológico e confirmar a ausência de toxicidade. Somente assim, elas podem
ser transformadas em produtos de uso coletivo e em saúde pública. O Programa da
OMS prioriza os estudos com plantas usadas na medicina tradicional chinesa,
indiana, arábica e pelos índios
americanos. Recuperar informações sobre as plantas medicinais nativas do
Brasil, e promover seu melhor aproveitamento é, portanto, de grande relevância,
e precisa ser priorizado. Isto porque os contínuos impactos sobre a
vegetação nativa brasileira têm conduzido a uma intensa erosão genética e
cultural, afetando o conhecimento sobre as plantas úteis nativas do Brasil. Estudo
recente vem demonstrando, por exemplo, que o conhecimento tradicional sobre as
plantas encontra-se acumulado em pessoas muito idosas, e ele não vem sendo repassado
para as novas gerações. Outra consequência observada é que, diferente do
observado no passado, a maior parte das plantas usadas como medicinais hoje (como
hortelã, camomila, capim santo e manjericão) são nativas de outros continentes;
elas vêm sendo introduzidas aqui desde os primeiros tempos da colonização
portuguesa.
Muitas informações sobre o uso tradicional das plantas
encontram-se nos materiais produzidos no século XIX. O botânico francês Auguste
de Saint-Hilaire é um dos que deixou um dos mais preciosos legados: informações
sobre o uso tradicional de mais de 300 plantas nativas de Minas Gerais foram
registradas na sua obra, inclusive nos cadernos de campo (depositados no Museu
de História Natural da França, em Paris). Em uma das notas desses cadernos, por
exemplo, Saint-Hilaire descreve a existência do “Soita cavallos branco” (ou
Açoita cavalos), perto da Fazenda das Laranjeiras, na antiga rota do comércio,
em Andrelândia - MG (Figura 1a). Este nome popular é dado a espécies de Luehea, especialmente a Luehea divaricata Mart., planta da
família das Malvaceaes. Saint-Hilaire descreve vários usos para a planta em seu
livro Plantas Usuais dos Brasileiros, publicado em 1824:
“Serve-se de sua casca para curtir o couro. Uma outra árvore do mesmo
gênero, também originária do Brasil, a Luhea
divaricata, tem uma madeira branca, tenra e leve, mas, ao mesmo tempo de
um granulado comprimido que pode ser trabalhado
com facilidade e vantagens, e que é empregado em diferentes
obras, sobretudo para coronhas de fuzil. É provavelmente por
causa das mesmas qualidades que com a madeira da Luhea
grandiflora fazem-se solas de calçados para
caminhar nos pântanos.
Em geral, é aquela que de todas as espécies desse gênero, das
quais as últimas viagens ao Brasil aumentaram o número, oferece
esta dupla vantagem da firmeza unida à flexibilidade; daí o uso
geral que se faz de suas varetas para chicotear os animais de
carga, e o nome vulgar, e por assim dizer genérico, de Açoita
cavalos, que traz a
maioria dessas árvores.”
Auguste de Saint-Hilaire
Plantas Usuais dos Brasileiros, 1824
Em 1843,
outro importante naturalista, o alemão K.F. von Martius, registrou com detalhes
o uso tradicional da planta, em seu livro específico sobre plantas medicinais, Systema de Materia Medica Vegetal Brasileira:
“A casca da arvore, que assaz frequentemente se encontra na provincia de
Minas, deve contar-se entre os productos adstringentes; e supposto possua esta
qualidade em menos em menor gráo do que outras, assentei contudo que não devia
omitti-la, por ser de regiões elevadas, onde as arvores idoneas para a
preparação das pelles são muito menos freqüentes do que nas terras baixas,
povoadas de vegetais sempre verdes. Emprega-se em fomentações adstringentes nos
tumores rheumaticos das articulações; assim como em crysteis nas diarrheas
chronicas, e injeções, e injeções na leucorrhéa.”
Von Martius
Systema de Materia Medica Vegetal
Brasileira, 1843.
Outra planta importante,
cujo emprego foi observado pelos naturalistas na região do caminho do comércio,
foi o mate, Ilex paraguariensis A. St-Hil.
Saint-Hilaire foi responsável pela descrição botânica desta espécie, cujo uso
lhe chamou a atenção enquanto percorria o sul do Brasil. O chá da planta já era
usado pelos ameríndios antes da chegada dos europeus ao Continente e esta
prática acontecia também no sul de Minas Gerais (Figura 1a). A planta foi cultivada comercialmente nos arredores do caminho do comércio e
este foi, muito provavelmente, uma das vias de escoamento da produção. Amostras da planta foram coletadas pos Saint-Hilaire na
região de Barbacena (figura 2b) e nas redondezas de Carrancas. Infelizmente, o
cultivo e o comércio do chá mate em Minas Gerais foram desativados e hoje, um
dos últimos indivíduos pode ser observado na região de Andrelândia (figura
2c). O mate tem uso extensivo e atual na
Argentina, Paraguai, Uruguai e sul do Brasil, e é hoje um dos principais
produtos de exportação daquela região. As folhas são estimulantes, devido ao
elevado teor de cafeína, e também digestivas. Estudos recentes confirmaram a
ação benéfica do chá da planta como colerético (estimla a secreção de bile),
confirmando assim o seu uso tradicional.
Infelizmente,
informações tradicionais sobre espécies nativas do Brasil, como o Açoita
cavallos ou a congonha, vem ao longo dos séculos caindo no esquecimento, sendo
muito pouco aproveitadas pelos próprios brasileiros. Além de manter a tradição, o uso comercial
dessas e outras plantas úteis e medicinais poderia representar uma fonte de
renda importante para as comunidades locais. Desde 2003, a equipe do Banco de
Dados e Amostras de Plantas Aromáticas, Medicinais e Tóxicas, sediado no Museu
de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais
(DATAPLAMT-UFMG) vêm desenvolvendo, com contínuo apoio da FAPEMIG, uma série de
atividades visando recuperar dados e imagens de plantas com histórico de uso
tradicional em Minas Gerais. Estas pesquisas, com característica
transdisciplinar, já renderam diversas publicações e um banco de dados e
imagens das plantas, disponível na internet (www.dataplamt.org.br). O DATAPLAMT é também um
depositário de plantas medicinas certificadas, ou seja, padrões de referência
farmacopéicos, que são usados para estudos comparativos de controle de
qualidade. O objetivo de todos os trabalhos é manter vivo o conhecimento sobre
as plantas brasileiras, e promover seu melhor aproveitamento.
Figura 1a. Caderno de campo de Auguste de
Saint-Hilaire: ver número “143 Malvacée”, linhas 9 e 10, “...prés la Fazenda
das Laranjeiras, N.V. Soitta cavallos branco...”
Figura 1b. Luhea
divaricata, em Mariana,
Figura
1c. Amostra coletada por Saint-Hilaire
Figura 2a. Caderno D
de Auguste de Saint-Hilaire: “... 483 ... N.V. Congonha da miúda ... arvore do matte...”
Figura 1b. Amostra
coletada em Barbacena, por A. de Sait-Hilaire
Figura 1c. Um dos
últimos exemplares de Ilex paraguariensis A. St.-Hil. (matte ou congonha) em Andrelândia
Comentários
Postar um comentário